Bem, Morgan, talvez devesse mesmo existir um dia da consciência branca...


Não, eu não estou brincando.
Estou falando sério. Talvez devesse mesmo existir um dia da consciência branca.
Obviamente que os motivos seriam diferentes.
Já explico.

O Dia da Consciência Negra foi incluído no calendário escolar nacional em 2003 junto com a lei que instituía o ensino da cultura e da história afro-brasileira nos currículos escolares, embora sua ideia seja mais antiga, geralmente atribuída a um grupo do Sul brasileiro no início dos anos 70 e depois popularizada pelo Movimento Negro Unificado, surgido em 1978. A data foi escolhida por ter sido a data provável do assassinato de Zumbi, líder do quilombo de Palmares no ano 1695. Embora haja controvérsias a respeito da validade da figura de Zumbi como sendo heroica e realmente representativa, achou-se mais adequado que a resistência negra representasse a consciência de si do que a data da promulgação da Lei Áurea em 13 de Maio de 1888, que teria sido movida por interesses econômicos mais do que por interesse dos direitos humanos da comunidade negra em si, que mesmo após abolição da escravatura, permaneceu marginalizada e discriminada na sociedade por tempo o suficiente para fazer com que se perdurassem efeitos disso até os dias de hoje.

A despeito desse histórico, ainda há pessoas no Brasil que desenterram aquele vídeo do Morgan Freeman falando sobre o Mês da História Negra dos Estados Unidos e como para acabar com o racismo precisamos parar de falar sobre ele. Que a história negra é a história dos Estados Unidos e que ninguém precisa de um mês para comemorar a história. E daí usam isso para falar da inutilidade do Dia da Consciência Negra no Brasil. Nós precisamos parar de falar sobre raças. Parar de chamarmos uns aos outros de homens brancos ou negros.

Eu entendo o raciocínio por trás do que Morgan Freeman fala - e de quem compartilha o famigerado vídeo. Ele está falando de pararmos de nos racializar e começarmos a nos entender como uma única raça, a raça humana. No caso específico, ele está falando de brancos e negros nos Estados Unidos da América se enxergarem apenas como uma grande e unida ação.

Isso seria incrível.
Se vivêssemos num mundo que já não tivesse sido racializado. Lá nos Estados Unidos, alguns teóricos norte-americanos vão detectar uma subcategoria do racismo que eles vão chamar de colorblind racism[1].

Mark Hearn (2009, p. 276, tradução livre) vai dizer que o racismo colorblind “acontece quando indivíduos, instituições e ideologias perpetuam desigualdade racial ao se recusarem a reconhecer cores nas pessoas, vendo-as apenas como indivíduos sem cor”[2]. Hearn discorre a respeito apontando que o problema com o racismo colorblind é que ele não reconhece problemas de privilégios e falta de privilégios na sociedade, além de negar a experiência diferenciada de uma pessoa de cor. Ele destaca que o racismo colorblind é perigoso “por que está tão inerentemente arraigado em nossas vidas diárias e discurso e vem de pessoas próximas como nossos amigos”, essa forma de racismo se baseia na firme crença de que racismo não existe em nenhum nível sistêmico ou público (p. 276-277).

Emerson e Smith no livro Divided by Faith: Evangelical Religion and the Problem of Race in America (2001) trabalham com uma pesquisa onde detectam a configuração do racismo colorblind entre os evangélicos norte-americanos.  Eles apontam que o problema de não reconhecer as raças – a existência da cor da pele das pessoas – é que os cristãos norte-americanos vivem numa nação racializada, ou seja, uma nação que em sua estrutura social faz diferença entre as raças e as questões raciais ainda são amplamente discutidas (EMERSON; SMITH, 2001, p. 12). Tentando entender o que faz com que o evangélico branco não reconheça essa realidade, a pesquisa de Emerson e Smith propôs a existência de uma “caixa de ferramentas evangélica” que impede esse reconhecimento. De forma simples, eles explicam que esta caixa é composta por três principais crenças: a “responsabilidade individualista do livre arbítrio”, “relacionalismo” (a centralidade das relações interpessoais) e “anti-estruturalismo” (a incapacidade de perceber ou indisposição de aceitar que existam influências sócio-culturais estruturais), formando assim uma mentalidade que trata o racismo como um problema apenas de ordem individual, que envolve unicamente a transformação pessoal e sem nada que se possa fazer para mudar a realidade dos conflitos raciais num nível coletivo. Um ponto de vista oposto ao que demonstraram os evangélicos negros entrevistados por eles, que trouxeram as questões raciais à discussão antes que os autores os perguntassem a respeito disso. Eles possuem um ponto de vista onde aceitam a dimensão individual do problema, mas acham que pouco se faz a respeito da abordagem estrutural que eles conseguem detectar por sua experiência enquanto comunidade negra (EMERSON; SMITH, 2001, p. 76-103).

Mas apesar da interseção de elementos, a realidade racial norte-americana e brasileira se diferem. Enquanto existiram as políticas de segregação racial nos Estados Unidos, no Brasil alimentou-se o silêncio baseado no chamado “mito da democracia racial”, a nossa versão do racismo colorblind.

"O mito da democracia racial, baseado na dupla mestiçagem biológica e cultural entre as três raças originárias, tem uma penetração muito profunda na sociedade brasileira: exalta a ideia de convivência harmoniosa entre os indivíduos de todas as camadas sociais e grupos étnicos, permitindo às elites dominantes dissimular as desigualdades e impedindo os membros das comunidades não-brancas de terem consciência dos sutis mecanismos de exclusão da qual são vítimas na sociedade." (MUNANGA, 2008, p. 77)

O mito da democracia racial e a fala de Morgan Freeman me lembram do teórico jamaicano Stuart Hall. Ao discutir A identidade cultural na pós-modernidade (1998) ou na modernidade tardia (como ele prefere chamar dentro do livro), Hall explica como o conceito das culturas nacionais são comunidades imaginadas com base em histórias, narrativas e mitos de fundação que acabam excluindo o que é diferente dessa narrativa. Ele diz que "não importa quão diferentes seus membros [os membros da nação] possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma grande família nacional" (p.59).

Hall ainda argumenta que o que se esquece é que "a maioria das nações consiste de culturas separadas que só foram unificadas por um longo processo de conquista violenta - isto é, pela supressão forçada da diferença cultural" (p.59). Nesse processo incluem-se as "tretas" raciais. Hall fala sobre como a raça é uma característica discursiva e não biológica. Embora haja controvérsias a respeito dos termos raça e etnia, um ponto de interseção é de que quando se fala de raça hoje, fala-se de uma construção social que tem a ver com a forma com que se identificam indivíduos através de suas características físicas e de origem, enquanto a etnia abrange questões de identidade cultural.

Paul Gilroy (1992, p. 87) vai dizer que atualmente tem-se espalhado de forma crescente um racismo que não se reconhece como racismo, mas relaciona o conceito de raça a conceitos como nacionalidade, patriotismo e nacionalismo. Um racismo que se distanciou das divisões pseudo-científicas biológicas para se aproximar de ideais nacionais em meio à crise, ideais alimentados pelo desejo de um retorno à uma grandeza construída no imaginário cultural. Ou seja, por mais que o Morgan Freeman acredite e defenda que a história negra é a história da América, não foi isso que, por séculos e até hoje na mente de muitos norte-americanos, foi contado nas narrativas nacionais deles.

E, aqui no Brasil, por mais que a nossa identidade nacional tente nos unificar sob a narrativa da democracia racial e da miscigenação, da nossa mistura, o discurso real é de que essa miscigenação se coloque sob um domínio de uma cultura etnocêntrica, que valoriza apenas o que herdamos dos brancos europeus e, mais recentemente, dos brancos norte-americanos, seja na aparência - a pele branca, os olhos claros, o cabelo liso - ou na cultura - a música, o cinema, as expressões artísticas e mesmo religiosas. Foi preciso criar-se uma lei que fizesse da nossa história também uma história afro-brasileira e não apenas uma história de "descobrimento" dos bravos colonizadores europeus que nos trouxeram a "civilização". Lei que ainda é dificilmente seguida e que se é cumprida por algum professor nas escolas, sofre retaliações de pais que acreditam numa doutrinação de esquerda simplesmente por haver um reconhecimento das nossas raízes negras e africanas.

O branco tem consciência de si. Ele sabe ser herdeiro da etnia europeia. O orgulhoso descendente de italianos e alemães, orgulhosos de onde vieram, orgulhosos da comida que reconhecemos como italiana ou alemã. A única consciência que o branco talvez precise adquirir, e por isso a minha defesa da existência de um dia da consciência branca, é a consciência da existência de sua cor. O branco não está acostumado a ser racializado, e por isso é difícil pra ele conceber a ideia de raça. Ele olha para as narrativas nacionais e se percebe nelas. Se percebe nos governos nacionais desde os tempos de colônia, se percebe representado por esses governos. Se percebe representado na mídia como ser humano individual - e talvez por isso se incomodem tanto quando são "racializados" e definidos como uma coletividade branca.

Já o negro se percebe como raça e coletividade desde que se iniciou o processo de imperialismo, mercantilismo e tráfico de escravos, desde que se criaram as teorias religiosas e pseudocientíficas sobre raça. E desde então, o negro precisa cavar muito para conseguir se perceber representado por nações poderosas, reis, rainhas e governantes, personagens nas narrativas que não sejam definidos como negros estereotipados. E uma vez tendo sido definidos como negros por tantos séculos, é impossível abrir mão dessa definição agora.

O dia da consciência negra, assim como o Mês da História Negra nos Estados Unidos, são apropriações dessa definição que foi imposta para nos colocarmos acima dela. Por isso, a maioria dos negros hoje discorda do Morgan Freeman. Eu sei, ele é negro e discorda de mim e essa é a beleza da diversidade e liberdade de expressão. Mas eu me sinto muito melhor representado pelos discursos de pessoas como Spike Lee, Whoopi Goldberg, Viola Davis, Steve McQueen, Jordan Peele, Daniel Kaluuya, Ava Duvernay, Dee Rees, Halle Berry, Taraji P. Henson, Janelle Monáe, Donald Glover a.k.a. Childish Gambino, Barry Jenkins, dentre tantos outros negros talentosos e reconhecidos da indústria Hollywoodiana que celebram a diferença.

Olhando para o Morgan Freeman e sua opinião, eu defendo sim que talvez devesse sim existir um dia da consciência branca, para que o branco olhe para nossa história com um novo olhar e perceba que, enquanto ele não foi racializado e sempre foi tratado como um ser humano comum, normal, individual, com consciência própria, as outras raças - não apenas os negros, mas todas as raças e etnias não brancas como os povos indígenas das Américas, os aborígenes da Austrália, os orientais do oriente próximo e também os do oriente extremo - sempre foram narradas como os outros, os que fogem do padrão etnocêntrico europeu, sempre vistos como uma coletividade homogênea e estereotipada.

No Brasil essa diferença é mais discreta por conta da miscigenação. Mas quantos dos meus amigos e amigas brancos miscigenados, com seus lábios carnudos, cabelos crespos ou encaracolados, olhos castanhos comuns, ou pele mais escura, já não me disseram ter se sentido em algum momento na vida diminuídos por não possuírem em sua aparência o ideal ariano de raça?

Eu queria, de verdade, viver num mundo onde não fôssemos classificados pela cor da pele, textura do cabelo, espessura dos lábios e largura do nariz. Queria mesmo viver num mundo onde expressões culturais diferentes fossem realmente respeitadas. Assim eu poderia concordar com o discurso da democracia racial e do "parar de falar sobre racismo".

Mas, como Mike Hearn destaca no seu estudo sobre teologia e racismo colorblind, "o desafio para a igreja evangélica é praticar uma teologia da imagem de Deus que intencionalmente celebre a etnicidade e a cor, reconhecendo a soberania e bondade de Deus em criar as pessoas como elas são [...] como as pessoas de cor aprendem a negar sua herança étnica e identidade para parecerem ‘americanos’, nós devemos oferecer uma teologia de um Deus que não apenas vê as cores, mas as ama"[3] (HEARN, 2009, p. 285, tradução livre).

Com isso em mente, aproveite que ontem foi o dia da consciência negra e ainda estamos neste mês, para refletir sobre qual a consciência que você possui de si mesmo e do outro, seja você de qual etnia for. Acredite, isso pode ser libertador.

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[1] Em tradução literal seria “racismo daltônico” ou “racismo cego à cor”, pela falta de uma expressão equivalente no português, utilizarei o termo “racismo colorblind”.

[2] It occurs when individuals, institutions, and ideologies perpetuate racial inequality by refusing to recognize color in persons but rather see them as non-colorized individuals

[3] The challenge for the Evangelical church is to practice an image of God theology that intentionally celebrates ethnicity and color for it acknowledges God's sovereignty and goodness in creating people just as they are [...] as persons of color learn to deny their ethnic heritage and identity in order to be seen as "American," we must offer a theology of a God who not only sees color, but loves it.

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