Eu não acredito na cultura do "cancelamento" pelo mesmo motivo pelo qual eu não deixo a Igreja


Eu não desfaço amizades com pessoas babacas.

Ou pelo menos tento não desfazer.

Hoje existe a tal cultura do "cancelamento". Geralmente é aplicada a artistas que cometeram atos intolerantes (e muitas vezes criminosos). Mas também é aplicada a amigos que possuem posições políticas complicadas. E muitas vezes é a razão pela qual pessoas deixam instituições religiosas (que são basicamente pessoas organizadas num sistema de representações simbólicas).

Lembrando que este é um texto sobre a minha opinião e experiência. Portanto, não estou aqui usando minha carteirada de formado em teologia para dizer o que é certo e errado. Estou simplesmente respondendo à pergunta: Por que eu não  gosto da cultura do cancelamento?


Eu parto do princípio de que as pessoas são seres complexos e de que se eu me cerco apenas de gente com quem concordo, que pensa como eu ou que eu acho boazinha, além de estar me limitando, eu estou reduzindo uma pessoa à sua babaquice. Eu sei que sou babaca com as pessoas muitas vezes (nunca intencionalmente), se todo mundo me reduzisse com base na minha babaquice eu seria um desgraçado solitário. Um amigo meu que apoie um político que eu considero que ameaça a minha existência e os meus direitos, vai ouvir que discordo dele, vai me ouvir chamando a opinião dele de racista ou machista, dependendo do comentário que ele fizer.

Mas uma vez que tenho um laço formado, é ir contra meus princípios desfazê-lo por isso.

Em relação a consumir arte de pessoas intolerantes, eu parto do princípio de que a arte não pertence ao artista a partir do momento que é publicada. Tanto que não escuto as músicas que explicitamente dizem coisas que não concordo e que não se comunicam comigo de nenhuma forma. Se vou defender e divulgar o artista, daí já é outra história.
Esses tempos no Instagram eu citei o caso do Kanye West que sustenta diversas posições das quais discordo e é porta-voz de muita coisa que eu acho bem ruim. Isso não me impede de me arrepiar ouvindo o Sunday Service Choir dele cantando "Revelations 19:1".
Assim como o fato de Roman Polanski ter sido acusado de um crime horrendo contra uma menina, não retira a importância de "Repulsa ao Sexo" ou "O Bebê de Rosemary" para a discussão contra o machismo e a cultura do estupro.

A coisa se torna muito mais complexa quando se trata de uma pessoa que eu conheço. Mesmo que a pessoa sendo porta voz da babaquice e da intolerância, não simplifico o meu relacionamento com quem ela é e o que ela faz a isso. Minha experiência com essa pessoa vai além disso.

Se eu assumo um rótulo - seja ele religioso, cultural, ideológico, partidário - eu automaticamente estou me associando com um monte de gente que não tem nada a ver comigo, que eu discordo e até pessoas por quem às vezes tenho sentimento de desprezo.

Se sou um fã de quadrinhos, estarei no mesmo grupo de pessoas que demonstram racismo extremo ao comentar mudanças de etnia de personagens dos quadrinhos para o cinema.  Se sou fã de rock, estou no mesmo grupo de um monte de homens brancos machistas que reproduzem pensamentos que são contrários ao que o rock era em seu início. Se me rotulo como cristão no Brasil, estarei associado a figuras polêmicas como Silas Malafaia e Marco Feliciano.

Eu não gosto de jeito nenhum o que Silas Malafaia e Feliciano representam para o cristianismo e discordo diametralmente da posição deles. Mas se eu fosse amigo deles, por exemplo, a coisa seria mais complexa. Eu provavelmente continuaria com a mesma opinião, mas eu conheceria outros lados deles que eu não conheço.

Então, por mais esquisito que isso pareça, eu nem sempre relaciono amizade com caráter.
Minha religião me manda amar meu inimigo. Vou cortar relações com amigos por serem pessoas horríveis? Eu seria incoerente.

E nem é só sobre minha religião. É sobre minha personalidade também.
Geralmente quando eu me afasto de uma pessoa que eu acho babaca, é um processo mais natural. As diferenças vão fazer com que as coisas tomem o curso natural do afastamento. Mas raramente por uma decisão de "não quero mais me relacionar com".
Eu acredito que as pessoas podem construir caráter melhor, acredito em mudança e evolução. Esse é um dos principais motivos pelos quais eu dou segundas chances às pessoas.

Mas eu também acredito que "um dia ruim" e isso tudo vai por água abaixo. Nesse sentido, por mais que eu considere você uma pessoa com a moral mais coerente e "correta" que o Kanye West ou o Marco Feliciano, no fim do dia, eu acredito que você pode ser tão incoerente e "babaca" quanto eles num conjunto de circunstâncias específico que te leve a isso.

E eu não estou nem acrescentando o fator "consciência" aqui. Não estou colocando na conta quando a pessoa faz por ignorância ou só por teimosia. Por mais que eu acredite em seres humanos de bom caráter, eu não acredito na bondade no ser humano.

Por exemplo: Um amigo meu que eu tiver por perto que é um lixo com mulheres vai saber que eu acho que ele é um lixo com as mulheres. Vai saber o que eu penso sobre e vai levar uns "xingos" por isso. Se ele fizer algo criminoso e eu souber, eu vou denunciar. Se ele ainda assim quiser ser meu amigo e de alguma forma a amizade continuar funcionando (o que vai ser muito difícil, mas não é completamente impossível), essa pessoa vai permanecer na minha vida.

A razão? Eu acredito (e me relaciono com) num Deus que morreu por mim, sabendo que eu ia negar o sacrifício dele diversas vezes e machucá-lo e fazer um monte de coisa que ele detesta, coisas horríveis. Ele fez isso por mim e eu tento fazer por outros. É isso.

Eu consigo fazer isso sempre? Não.

Quando envolve religião, tudo isso fica mais complexo ainda. NADA justifica atitudes intolerantes. Nada. Muito menos a Bíblia. E acho que o comportamento de líderes religiosos intolerantes PRECISA ser combatido. Mas eu nunca deixo de pensar que essas pessoas talvez realmente acreditem que o que estão fazendo é bom. Na cabeça de muita gente que tem opiniões homofóbicas, elas estão oferecendo amor e misericórdia. Eu rio de nervoso escrevendo isso, pois eu tenho calafrios com esse discurso.

E sei de a linha entre isso e defender que Adolf Hitler era bonzinho parece um pulo, mas estou só tentando explicar a complexidade de todas essas coisas. Aliás, é por causa dessas complexidades que as vezes simpatizamos com vilões que fazem coisas horríveis, como Magneto (dos X-Men), Killmonger (de Pantera Negra) ou Hannibal.

Acho complexo como as vezes a gente discute religião como se fosse apenas um fenômeno social. É um fenômeno social, na maioria das vezes utilizado para propósitos políticos que levam a discurso de ódio e genocídio. Mas nem por isso deixa de ser também algo extremamente pessoal e que muitas vezes faz parte intrínseca da identidade de uma pessoa. Isso torna essa discussão extremamente complexa.

Sim, eu acredito firmemente (basta ler meus outros textos por aqui), que faz parte do Evangelho e da missão e da essência do cristianismo lutar contra a intolerância e a opressão. Ainda assim, precisamos lembrar que esse é apenas um aspecto do cristianismo. Não é todo ele. Nós também acreditamos numa salvação espiritual que tem a ver com o futuro e não com apenas melhorar a sociedade que vivemos agora - e eis também um dos problemas que tenho com algumas vertentes das teologias negras da libertação, por exemplo.

Paulo deixa claro que o Evangelho também escandaliza. E não escandaliza apenas os conservadores fundamentalistas, o Evangelho também escandaliza a gente que se considera bonzinho e tolerante.
Algo sobre ele que eu acho bizarro, mas que pra mim faz muito sentido, conhecendo o Deus apresentado nela e talvez você entenda melhor meu ponto a partir disso é o seguinte:

Cristo morre na cruz por por Maria Madalena e também por Pilatos, pelos romanos e fariseus, pelos judeus e por Hitler, por Charles Manson e por suas vítimas, por Marielle e também por Bolsonaro.

Todos eles, segundo o que acredito, em algum nível são sagrados por respirarem fôlego divino. Isso significa que não importa o que qualquer um desses que citei fazem ou fizeram durante o tempo de vida deles, se a decisão final deles, antes da morte, for sinceramente aceitar o sacrifício de Cristo por eles, eles vão pro paraíso no fim de tudo, porque a cruz nivela todo mundo, dos melhores aos piores. Não tem ninguém inocente na parada.

Nos dias de hoje, essa talvez seja a coisa mais desafiadora para o ser pensante religioso. E talvez seja isso que faz com que muita gente abandone o "rótulo" do cristão que vai à igreja e pertence à uma instituição. Mas se essa for a única razão, acho que perdemos de vista o que é ser humano e o que é ser igreja. Ser igreja é, muitas vezes, ser associado a pessoas que são nosso oposto, é muitas vezes estender a mão para ajudar criminosos e pessoas desprezíveis, é muitas vezes manter a amizade com gente babaca e amar pessoas que não te amam de volta.

Recentemente postei um texto sobre isso no Instagram e disse: Se, com todas as falhas de interpretação que todos temos, eu ainda creio na mesma base bíblica que eles e deixo a igreja por achar que eles não entenderam nada e eu sim, qual a diferença entre mim e eles?*

Nos achamos muito inteligentes e esclarecidos, mas esquecemos que, se respiramos e vivemos, não vemos nem um palmo à frente do nosso nariz.

E se você leu o texto todo e achar que eu estou errado e que falei besteira, está tudo bem também. Você é bem vindo - inclusive a discordar veementemente.

Certamente, a palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós, que somos salvos, poder de Deus. 
Pois está escrito:
Destruirei a sabedoria dos sábios e aniquilarei a inteligência dos instruídos.
Onde está o sábio? Onde, o escriba? Onde, o inquiridor deste século? Porventura, não tornou Deus louca a sabedoria do mundo? Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por sua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar os que creem pela loucura da pregação. Porque tanto os judeus pedem sinais, como os gregos buscam sabedoria; mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios; mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.
(1 Coríntios 1: 18-25)

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* PS.: Deixando claro que é sempre importante, inclusive para manter essa postura que eu tento manter, cuidar da nossa saúde mental. Cuidar da saúde mental muitas vezes exige afastamento de pessoas e relacionamentos tóxicos. Nesses casos, a misericórdia e o amor ainda podem ser manifestados, mesmo dentro de limites. É válido também lembrar do alerta do jugo desigual em 2 Cor 6:14-18, que vale tanto para esse tipo de relacionamento, quanto para o relacionamento entre a pessoa e a religião. Ou seja, um relacionamento tóxico ou uma instituição que, em sua base declarada de crenças (não apenas no comportamento de seus líderes) está indo contra o que a Bíblia diz são fatores que talvez exijam desligamento, mas não excluem o dever da misericórdia e do amor em relação às pessoas e indivíduos e abstenção da demonização e intolerância. Mas isso rende outro textão.

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