A História da Consciência Negra de um Negro Brasileiro (e Cristão)

Para Ler Ouvindo: "Quando eu Olho Pra Você" - Felipe Valente | Playlist "Gospel Black Power" Parte 1 e Parte 2 da page Shabat Shalom


Você já se sentiu desconfortável cantando a música "Quando eu olho pra você" na igreja quando o ministro pede que você cante olhando para o irmão do lado?

Se você está lendo e não conhece essa canção, o link está logo acima da minha foto. Clique e vá ouvindo enquanto lê mais esse texto sobre um assunto que parece não querer me deixar em paz, mesmo depois que eu já tenha pessoalmente me resolvido com ele.

Eu sou brasileiro com força. Brasileiríssimo.
Reza a lenda que uma das minhas bisavós era filha de uma escrava com seu senhor de engenho, e que sua sinhá criou essa minha bisavó como se fosse filha - não sei se por bondade ou se por obrigação. Trama pura de novela das seis.
Minha avó é descendente de indígena, e o pai dela era português.
Meu avô era um negão de tirar o chapéu, com melanina de sobra.
Sou de Minas Gerais, um dos estados mais antigos do Brasil, natural de Teófilo Otoni, cidade que foi lar de colonos alemães, principalmente, e também italianos.
Minha mãe é negra, é filha de pai preto e mãe branca.
Meu pai é filho de brancos miscigenados. Ele é branco, tem cabelos crespos - mais crespos que os da minha mãe -, nariz achatado e lábios grandes. Minha vó diz que alguém branco com essas características é o famoso sarará miolo (embora o termo geralmente seja usado para filhos miscigenados com cabelos crespos e loiros).
Minha mãe carrega sobrenomes portugueses, e meu pai também.
Meus dois sobrenomes não são tão comuns, mas também não possuem nenhuma origem em países como Alemanha, França, Itália, Suiça... Sou brasileiro sim, sinhô.
Brasileiro preto. Cabelos crespos. Nariz achatado. Rosto arredondado. Olhos castanhos, quase pretos. "Beição".

Não sei qual foi a primeira vez em que percebi que eu era assim. Não sei se sabia o que era ser negro ou branco. Só sabia que as pessoas eram diferentes.
Acho que é assim que as crianças veem, pelo menos as novinhas que ainda vivem despreocupadamente, no colo dos pais. Elas só veem pessoas. Elas demoram a absorver conceitos que tem a ver com etnia e beleza. Os padrões se formam no decorrer da vida.

Acho que a primeira vez que me lembro racionalmente de ver alguma diferença entre uma coisa e outra foi quando minha mãe cortou e relaxou/alisou o cabelo pela primeira vez depois que eu já conseguia me lembrar das coisas. Lembro-me bem do cheiro do relaxante. A marca era HairLife e ele usava um componente químico que caiu em desuso por causa do cheiro forte e do tanto que prejudicava o cabelo. Lembro da embalagem com flores amarelas, do cheiro ruim e do fato de que, pras mulheres da minha família, ele fazia algo com o cabelo da minha mãe que o deixava mais bonito do que era naturalmente. Não sabia dar nome a isso, mas sabia que era isso.

Minha família é em sua maior parte composta por mulheres e eu também sempre tive muitas amigas. Era inevitável escutar as conversas delas. Em várias dessas conversas eu ouvia: "Ah, o filho de dona Cenira é muito bonito. Um menino alto, cabelo bom, olhos claros, moça". Outras vezes ouvia assim: "Ah, pai era bem negão, mas tinha o cabelo bom né... Por isso que as meninas nasceram com cabelo bom, por causa do cabelo liso de mãe e o de pai que não era tão ruim". Ou quando comentavam o novo namorado de alguém: "Você viu? A Ju tá namorando o Betão." "Que Betão?" "Aquele pretinho, moça!" "Sério? Mas ela é tão bonita pra ele! É alta, tem os olhos claros!".
"Ah, as meninas todas tem o cabelo bom. Só eu e Ni que nascemos com o cabelo ruim!"
"A Maria tá namorando. Um rapaz preto, mas bem bonitinho, viu?"
"Oh dó, menino de Carla nasceu! Coitado puxou o pai... Ao invés de nascer loirinho igual a mãe, né?"
Tenho essas conversas em minha mente ainda. Várias delas repetidas em loop com pessoas diferentes, situações diferentes.
A primeira vez que conversei sobre racismo foi num episódio muito antigo. Não lembro da minha idade, mas eu era bem novo. Devia ter uns cinco, seis anos de idade, levando em consideração a igreja que eu frequentava na época. Minha mãe brincava que a filha de uma amiga dela (que nasceu na mesma época que eu) seria minha esposa quando eu crescesse. Ela tinha um tom de pele bem mais escuro que o meu, embora seus cabelos fossem cacheados, não crespos. Nós formávamos um casal bonitinho, pensando em retrospecto, mas eu não gostava da ideia. Um dia eu expressei em palavras o motivo.
Nos encontramos no corredor da igreja. Lembro de maneira bem forte dessa cena, embora eu não lembre exatamente as palavras (e escrevo isso desejando fortemente que ela não lembre disso com a dor que eu imagino que talvez a tenha afetado nesse dia). Minha mãe sorriu quando viu a menina.
- Olha, Jônathas! Sua namorada!
- Eu não quero namorar essa menina. Ela é feia. Ela é preta.
Lembro-me que minha mãe me chamou a atenção na hora. Mas depois ela conversou sério comigo e explicou que a menina tinha ficado muito, muito triste. Que não se podia fazer aquilo. Aquilo era feio. Era racismo.

Depois disso eu entendi um pouquinho do que era racismo.
Eu ouvi sobre isso na escola. Ouvi falar de escravidão, ouvi casos de gente que era expulso de lojas só por ser negro, gente que apanhou por ser negro, gente que foi maltratado por ser negro. Eu entendi que racismo era errado. Entendi que fazer o que eu tinha feito com aquela garota era errado.
Naquela época, ainda se usava projetor de slides na igreja. E projetor de slides não é o que os professores usam na sala hoje. Você colocava uma fita K7 ou um LP pra rodar o áudio, depois de organizar os pequenos slides em negativo e os passava enquanto o projetor os lançava na parede.
Era uma história feita para "acabar com o racismo". Era sobre um garotinho negro que sofria bullying racial na escola. Se eu não me engano, seus colegas o chamavam de "floquinho de neve". e chorava muito por isso. Um dia ele passou na rua e viu alguém vendendo um sabonete que deixava a pele branca como a neve. Quem sabe se ele usasse aquele sabonete, ele se tornasse branco?
Ele juntou dinheiro e comprou o sabonete. Foi pra casa ansioso e começou a tomar banho. Mas ele não ficava branco. Nunca vou esquecer que ele se esfregou até sangrar a pele. E nunca vou esquecer o que a mãe dele lhe dizia no final da história.
"Não tem problema nenhum você ser negro, meu filho. Você é negro, mas tem um coração branco."

Não foi a única coisa que ouvi no meio cristão no qual cresci. Ouvi várias vezes que no céu seríamos todos bonitos e que lá meu cabelo seria bom. Ouvi dizerem isso pra minha irmã também. No céu teremos o cabelo liso. Claro! Em todas as imagens que vi na minha infância, no céu só havia salvos e anjos brancos de cabelos lisos. Por muito tempo pensei que as pessoas se tornariam brancas no céu. Até por que, ouvi diversas vezes que a marca colocada em Caim para que ninguém o marcasse tinha sido a pele escura. Mais comum ainda era ouvir que a maldição rogada por Noé em Cam era a pele negra. Por isso os negros haviam sofrido tanto ao longo da história. Por isso, por causa de diversos equívocos nas interpretações feitas de escritos bíblicos e proféticos, tudo na cultura africana era condenável, os atabaques e tambores, as roupas coloridas que não incluíam terno e gravata. Por isso, apesar dos diversos princípios teológicos dos quais os protestantes discordam no filme "O Auto da Compadecida", o maior problema para eles era a blasfêmia de contratar um ator negro para interpretar Jesus.

Na escola, apesar de estudar história, como os negros foram escravos e como isso era terrível e que "Graças à Princesa Isabel os negros foram libertos", apesar de existir o dia da consciência negra, poucas vezes eu vi coisas mais profundas serem discutidas. Claro, em nenhuma dessa situações havia intenção de ser racista, mas há um peso simbólico em ser amigo das meninas e perceber que quase todas elas tinham preferência pelos meninos de cabelos lisos e olhos azuis. Há um peso simbólico em nunca ver um negro ou uma negra nos papeis de príncipe e princesa da peça na escola. Há um peso simbólico em interpretar sempre o macaco ou o saci nos teatrinhos. Eu lembro de assistir a série animada dos X-Men que passava na Globo nos anos 90 e não conseguir associar a Tempestade com uma personagem negra. Lembro que quando escolhi o elenco para a minha versão brasileira dos X-Men (eu vivia fazendo isso), escolhi uma atriz loira de olhos claros. Afinal, as características mais marcantes da Tempestade eram seus olhos azuis e seu cabelo branco esvoaçante. Demorou para que eu percebesse que ela era uma personagem representativa. Demorei a entender que ela era negra.

Demorou até que eu estivesse na oitava série para que uma professora fosse na minha sala dizer que cabelo pixaim não era sinônimo de cabelo ruim. Mas o que era isso perto de todas as vezes que ouvi de colegas na zoação "inocente" que meu cabelo serviria pra lavar a panela, pois parecia Bom Bril? (E eu queria muito dizer que não ouço mais isso).
Até então eu não era um cara muito de espelho. Fazia apenas o necessário. Não havia nada para fazer no meu cabelo além de cortar. Era o que a minha avó fazia com a minha mãe. Apenas ela e sua irmã mais nova tinham o cabelo crespo dentre as oito irmãs. As outras seis tinham dado sorte por terem nascido "negras de cabelo liso ou ondulado". Minha mãe e minha tia tinham os cabelos cortados como de homem na época ao som de "Nega do cabelo duro, qual é o pente que te penteia? É só o pente lá da cadeia", cantado de forma despretensiosa e inocente. Cabelo duro tinha que ser cortado. Era mais bonitinho, não parecia picumã (nome que se dá para aqueles bolos de poeira e teia de aranha que se formam embaixo das camas e atrás dos guarda-roupas).
Ouvi dizer que dava pra afilar o nariz e "deixá-lo" mais bonito se apertasse ele com frequência.

Por isso não ofereci tanta resistência quando minha prima resolveu relaxar/alisar meu cabelo. Eu já estava chegando ao fim da minha adolescência, estava no meu ensino médio. Havia emagrecido, então estava um pouco mais seguro de mim mesmo. Achei o máximo finalmente poder passar gel, fazer topete e sentir meu cabelo cair facilmente na testa na hora de lavá-lo. Eu finalmente tinha algo do que me orgulhar e com o que me preocupar ao olhar no espelho. Eu podia até assumir um pouco meu lado roqueiro que havia adquirido na época e que tinha me feito mudar minha preferência de mulheres loiras para mulheres brancas de cabelo preto ou ruivo. Esse era o ideal de beleza. Eu agora podia até pagar de rocker sem medo de parecer o ridicularizado "Evandrinho Emo" do Orkut, que se tornou uma sub-celebridade da rede social por fazer chapinha no cabelo usando franja de emo e usar lentes de contato azuis. Mas ele não conseguiria disfarçar. Ainda havia seu nariz achatado, seu "beição" e sua pele escura para afirmar sua etnia.

O negro bonito era raro. Era a exceção. Taís Araújo era uma negra bonita. As outras eram as serviçais caricatas das novelas. Foi a primeira protagonista negra de uma novela chamada "Da Cor do Pecado". Em 2004. Também foi a primeira Helena negra do Manoel Carlos, primeira no horário nobre, em 2009. Lázaro Ramos foi o primeiro galã negro numa novela do horário nobre. Em 2011. A negra bonita estava na TV, o negro bonito era o negão careca e musculoso. Várias vezes ouvi que tal pessoa era negra, mas era bonita por ter os "traços finos". Várias vezes, quando dizia que eu sou negro, ouvi em tom de consolo e condescendência que eu não sou "tão negro assim" - só faltava completar com um, "fique tranquilo, não se preocupe". É como se existisse uma escala de beleza e as pessoas loiras, altas, esbeltas, de olhos azuis e cabelos lisos esvoaçantes estivessem em uma extremidade, e os negros de pele bem escura, olhos escuros, cabelos bem crespos, nariz bem achatado e arredondado estivessem em outra.

Eu já estava com meus 21 anos, quando comecei a perceber beleza na negritude em geral. Mesmo crescendo numa família onde 98% é negro. Mesmo crescendo ouvindo na escola que racismo é crime e é consequência da cultura nociva da escravidão. As nuances mais suaves da vida, os detalhes, as pequenas falas, as piadas contadas sem maldade... Toda a construção social da imagem do negro na minha cabeça me impediu de ver beleza no cabelo crespo e no nariz "de chapoca", me impediu de achar que eu poderia ser considerado bonito pelas garotas de quem gostei na escola, me impediu de ver beleza em garotas belíssimas pela cor da pele delas, pelos narizes delas e cabelos delas.
E na minha cabeça eu nunca tinha sofrido com o racismo. Ninguém havia me batido por ser negro. Ninguém havia me expulsado de lugar nenhum por ser negro. Quem faz terapia talvez entenda o que é ir tentando identificar no seu passado como você chegou onde está. Eu fui me descobrir afetado por esse amontoado de "pequenas coisinhas" já com 24 anos. Quando eu ainda achava que textão no Facebook sobre o assunto era mimimi. Quando eu concordava com a entrevista do Morgan Freeman onde ele diz que não precisamos falar sobre racismo e não precisamos ter um mês da consciência negra. Quando eu concordava com os que diziam que se colocar nesse tipo de situação é vitimismo. Quando eu achava realmente desnecessário um preto usar a camisa "100% Black".

O fato é que essas "pequenas coisas" que narrei aqui em perspectiva realmente aconteceram, era realmente o que eu pensava, mas não era algo que alguém enfiou na minha cabeça ou que eu parava pra pensar a respeito. Essas coisas que ouvi a minha vida inteira não foram ditas com a intenção de soarem racistas, as pessoas que disseram não viam problema nisso, era senso comum, era o que quase todo mundo - negros e brancos - achava. Era algo que foi trazido de tempos passados e que não era nem uma sombra do que a escravidão havia sido. Ninguém colocou propositalmente essas ideias nas nossas cabeças.
Apenas estavam lá, guardadas na nossa mente, abaixo da superfície, como uma informação que não precisasse de reflexão ou questionamento. Não era algo que provocasse resistência em mim ou na minha família, ou amigos, pois não foi físico, explícito e não machucava tão seriamente a ponto de eu pensar que havia sido ofendido. Eu sequer sabia que havia algo de ofensivo nessa forma de pensar. Eu não tinha maturidade o suficiente para perceber os traços de cultura racista impregnados em tudo isso.
E não foi lendo textão de Facebook, nem em manifestos socialistas que saquei essas coisas. Foi minha amiga Ana Paula, que me fez ver a beleza da negritude (a começar por ela mesma) como nunca antes, e só parei pra pensar sobre o que narrei aqui numa conversa por telefone com a minha mãe, quando nos questionamos sobre o imenso histórico de baixa auto estima na nossa família.

Quando eu toco hoje nesse assunto no meio religioso, ouço que isso é veneno de esquerda, que é fruto proibido do marxismo cultural. Eu não quero entrar nos méritos do relacionamento do cristianismo com os posicionamentos políticos, mas a defesa dos oprimidos não é mérito de Karl Marx. A noção de que não há etnias ou gêneros inferiores não é mérito da esquerda. Isso estava na Bíblia mesmo antes que Marx pudesse respirar, antes que se sonhasse em Revolução Francesa e Assembleias, em posicionamento político.
"Deus não faz acepção de pessoas" (Atos 10:34), "não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus" (Gálatas 3:28).
E quando olho para o que eu vivi, quando percebo que tudo isso que eu disse é apenas o mínimo, o pequeno e o comum, que há gente que sofreu coisas piores, mais explícitas, mais traumatizantes e teve a auto estima muito mais afetada com preconceito racial, com machismo, com bullying, com a noção errada sobre o que é ser pobre, com padronização da beleza e diversas outras anomalias, eu percebo que essa discussão está acima dos limites de direita e esquerda, vai além da discussão social. Trata-se de ser humano, de ter empatia, de calçar as sandálias uns dos outros.

Hoje eu sou bem resolvido, foi até fácil pra mim. Eu estou ok com isso. Superei essa fase - meio tarde, meio aos trancos e barrancos. E eu sei que existem exceções. Mas imagine a cabeça de uma criança ou adolescente negro que foi criado pensando que ser negro é feio. Imagine todos os dias, por todos os lados, em sua própria casa, na televisão, nas revistas, nos filmes, no consultório médico, nos clipes musicais, tudo dizendo indireta e "inocentemente" que é melhor ser branco do que ser negro? Você acha mesmo que é fácil simplesmente alguém vir e dizer com palavras e textos que não tem problema, quando tudo o que se vê e vive diz o contrário? Acha mesmo que não existe importância em representatividade? Em falar, em mostrar, em educar?
Eu, como cristão que já passou por isso e agora entende o que aconteceu, me sinto no dever de falar sobre isso para que outros que ainda não entenderam, possam superar também.

Nós, cristãos, sabemos como as consequências do pecado nos acompanham até hoje. Mais do que ninguém, nós sabemos como a história afeta quase irremediavelmente o comportamento da humanidade por séculos seguidos. Nós, adventistas do sétimo dia, esquecemos que também somos uma minoria entre os cristãos, que precisa o tempo inteiro explicar que o princípio da liberdade religiosa nos dá aval para guardarmos o sábado.
Nós deveríamos saber que todo mundo, de qualquer etnia, de qualquer classe social, de qualquer gênero, tem problemas e questões complexas de auto estima. Sim, todos têm. Oprimidos e "opressores". Um branco pode sofrer por ser gordo, por ter um nariz grande, alguns tem o cabelo crespo, algum tipo de deficiência física, por ser mulher, por ser gay, por ser pobre, por ser estrangeiro... Raramente por ser branco apenas (à exceção de lugares onde a comunidade negra se uniu e escolheu a retaliação separatista como modo de defesa, como em alguns lugares dos EUA) e raramente na mesma magnitude cultural. Sim, todos sofrem, Sim, todos devem ser amados. O sofrimento de um não elimina o do outro.
Mas deveríamos também conseguir identificar problemas que nos acompanham e que generalizam pensamentos, criam percepções erradas.  Deveríamos saber que 128 anos de abolição não são o suficiente para eliminar uma cultura de mais de dois séculos que não foi morta com a Lei Áurea. Deveríamos saber que as pessoas são pecadoras desde que nascem, mas que também são frutos do seu meio de diversos modos. Deveríamos saber que as palavras machucam, a cultura nos condiciona a pensar de certa maneira e que só o sangue de Cristo pode nos modificar e tirar nossas vendas para que possamos enxergar o outro.

Esse texto gigante, contando minha história, tem como objetivo desmistificar a ideia de que é fácil superar coisas que nos são ditas e repetidas na infância e de que racismo se resume a chamar um negro de "macaco". E se você acha que não tem nada a ver com isso, eu deixo com vocês uma citação de uma mulher que nós, adventistas, cremos ser inspirada por Deus, que foi escrita em outro contexto, mas na mesma realidade, e que pode nos apresentar um princípio que perdura:

"A lei de Deus contida nos Dez Mandamentos revela ao homem o seu dever de amar a Deus supremamente e ao próximo como a si mesmo. A nação americana tem uma dívida de amor à raça negra, e Deus ordenou que eles deveriam fazer a restituição pelo mal que fizeram no passado. Aqueles que não tomaram parte ativa na aplicação da escravidão sobre as pessoas de cor não estão isentos da responsabilidade de fazer esforços especiais para remover, tanto quanto possível, os resultados desta escravidão." (Ellen G. White, The Southern Work, 54, tradução livre).

Eu até concordaria com o Morgan Freeman sobre o fato de que o racismo não acaba pois continuamos falando nele, até concordaria que não precisamos de um dia da Consciência Negra, se não existe um dia da Consciência Branca. Eu concordaria se eu ainda não visse e ouvisse coisas como as que narrei aqui. Eu concordaria se eu não soubesse que ainda existe gente que se acha inferior por ser negro e gente que acha negro inferior. Eu pararia de falar sobre isso e postar textos sobre isso se o assunto não continuasse aparecendo das formas mais desconcertantes e revoltantes ainda hoje. E se alguém duvida, procure notícias sobre a filha do Bruno Gagliasso e da Geovana Ewbank e os comentários feitos sobre ela na internet, procure saber sobre a mulher que brigou com a outra na praia há algumas semanas por que "negro não precisa tomar sol", "praia não é lugar de negro", dê uma olhada em vídeos de experimentos sociais recentes sobre o assunto.
E se você ainda duvidar, apenas olhe ao seu redor, seja empático, tente entender as pessoas e se colocar no lugar delas. Tente medir as palavras, prestar atenção no que é dito e no que você diz. Tente refletir no que você acha de si mesmo ou dos outros. Tente enxergar a sociedade como um complexo composto de pessoas pecadoras, sofredoras. Tente olhar além das características físicas e ver o que se passa na mente, que é onde o preconceito começa. Tente amar o próximo como a ti mesmo.

E se pergunte: cantar "é por isso que você se parece comigo, por dentro e por fora" para o "irmão que está ao seu lado" na igreja, te ofende?


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