O Privilégio Nosso de Cada Dia



Eu sou privilegiado.
Tenho isso tão claro em minha mente quanto o sol do meio dia.
Tenho privilégios que muita gente não tem.
Eu tenho uma família completa. Meu pai e minha mãe ainda são casados, tenho um ótimo relacionamento com eles, e com minha irmã, e mesmo com os outros parentes fora do meu núcleo familiar. Eles me criaram com amor e carinho. Como qualquer ser humano, possuem seus defeitos, mas não me devem absolutamente nada que me prometeram. Há pessoas absurdamente mais ricas do que eu que não têm esse privilégio.
Nós temos uma casa própria. Meu pai tem um bom carro. Eu tenho meu próprio quarto na nossa casa, mesmo que atualmente eu more onde estudo – o que é mais um privilégio, tendo em vista que moro num centro universitário que funciona com regime interno. Estou na minha segunda faculdade. Sou bolsista na atual e fui bolsista na primeira.
Minha mãe me educou com senso crítico e com amor à leitura e à cultura. Cresci lendo, desenhando, assistindo filmes, ouvindo músicas cristãs bem compostas e música erudita. Alguns diriam que sou uma pessoa que tem repertório cultural o suficiente para manter boas conversações.
Para alguém que nunca fez um curso de inglês, meu inglês é bom e eu consigo conversar um pouco, ler e até entender entre 80% e 90% de um filme norte-americano sem legendas.
Tenho muitos amigos, mais novos, mais velhos, de classes sociais diferentes. Meu círculo de amizades é grande. Consequentemente, meu networking também.
Tenho uma auto estima bem boa para os padrões da maioria. Gosto de quem sou, do meu cabelo, da minha aparência – ok, tenho que emagrecer, mas gosto até mesmo de ser gordinho.
Atualmente, estou satisfeito com minhas crenças. Estou de bem com a vida e com Deus, e tenho sede da sua Palavra. Busco amar e sei que sou amado.
Eu poderia listar ainda mais coisas. Mas posso dizer que sou alguém feliz.
Tenho plena consciência de que sou privilegiado e sou grato por isso.

Mas nem sempre eu soube disso.
Aprendi meus privilégios às duras penas, e foi com muito esforço que aprendi a me agarrar na certeza de que eles existem. Eu demorei muito tempo para enxergar que havia várias pessoas que olhavam para mim da mesma forma com que eu olhava para outros que tinham mais privilégios do que eu.
E meus privilégios, outrora invisíveis para mim, me fizeram enxergar que havia privilégios que eu não alcançava. Eu não percebia que tinha brinquedos que outras crianças não podiam ter. Eu via os brinquedos que eu não podia ter nas prateleiras dos meus amigos que eram mais bonitas que a minha.
Eu era cercado de pessoas mais privilegiadas que eu. No meu círculo de amigos da escola, eu talvez visse apenas mais um ou dois cuja família não tinha um carro que havia sido fabricado antes dos anos 2000. Eu sempre tive que optar pela pipoca Aritana de 10 centavos ao invés da “batata da onda”, Ruffles (e isso prejudicava consideravelmente a minha coleção de Tazos). Observei por anos as meninas de quem eu gostava sorrirem para mim com condescendência enquanto escolhiam os meninos mais bonitos do que eu. Eu era gente boa, mas não servia para namorar. Não tinha as habilidades sociais, nem a aparência física necessária. Várias vezes tive que juntar as moedas e notas de um e dois reais que recebia para o lanche na escola (coisa que algumas pessoas nunca tiveram) pra comprar uma revista em quadrinhos ou um livro que eu queria muito. Eu fui o último a ter celular, o último a ter computador, o último a ter internet em casa – algumas das modas eletrônicas eu nem tive, não tive um discman (você sabe o que é isso?), meu aparelho de mp4 não era meu e usava o DVD e a tevê a cabo da minha avó.
Quando cheguei na oitava série, os meus amigos privilegiados foram fazer o ensino médio em escolas particulares excelentes, e estavam na corrida pelos vestibulares de Medicina e outros cursos desejados em universidades federais fora da cidade e do estado. Eu e alguns outros amigos tivemos que ir para a melhor escola estadual da cidade – que não era muita coisa, afinal, educação estadual em Minas Gerais – e a maioria deles sonhava apenas com as faculdades particulares que tinham por lá mesmo, alguns só queriam conseguir um trabalho.
Enquanto isso, a deficiência na minha educação em física, por exemplo, me impediu de passar na UFMG, por mais que eu tenha feito cursinho (gratuito) e estudado sozinho em casa para física como um louco. O que me levou à universidade fora da minha cidade para fazer o curso que eu sonhava fazer, foi ousadia, uma família e amigos que acreditaram em mim e a bolsa integral que o PROUNI me deu.


“Invejoso, ingrato”, você pode estar pensando, “Tem gente que sequer teve, e ainda tem acesso a essas coisas”.
Exato. E a minha sorte, meu privilégio, foi ter quem me fizesse enxergar isso. Eu aprendi a enxergar que algumas pessoas sequer desejavam essas coisas. Elas tinham coisas mais importantes para desejar. Água encanada, rede de esgoto, energia elétrica, até mesmo comida. Alguns nunca aprenderam a ler. Outros nunca sonharam em estudar. Eu percebi, já na faculdade, que eu ter saído da minha cidade para fazer o curso que eu queria na capital já me colocava numa posição privilegiada que alguns nunca tiveram. Eu ia conhecer o mundo.
Eu cresci na vida.

Um diálogo muito comum no meu dia a dia é:
“Ah, mas você é rico!”
“Eu? Rico? Tá doido, é? ”.
Em 99% das vezes, eu sou a pessoa que afirma a riqueza da outra. Mas me peguei surpreso ao constatar que já estive dos dois lados do diálogo.
Quando eu percebi isso, entendi que a escada dos privilégios é complexa. Muito mais complexa que qualquer textão de internet pode explicar. Muito mais complexa do que posições políticas polarizadas podem aceitar.
Enquanto tinha gente me admirando por ter saído da nossa cidade, eu admirava quem saía do estado. E quando saí do estado, passei a admirar gente que conseguiu sair do país.
Enquanto há gente que me admira por conseguir meu razoável nível de inglês, eu admiro quem fala inglês fluente, que por sua vez, admira quem fala a terceira ou quarta línguas.
Eu olho pra trás e vejo o tanto que conquistei e fico feliz.
Eu olho pra frente e percebo o quanto ainda há no mundo para conhecer e suspiro.
Por causa dos meus privilégios e “desprivilégios”, me vejo várias vezes em um limbo social esquisito. Por não terem tido as mesmas oportunidades que eu tive, muita gente enxerga uma barreira entre mim e elas, e às vezes é difícil até mesmo manter o papo. Ao mesmo tempo, outros pensam muito além de mim, além do que eu posso sonhar e conversar no momento.



Tenho amigos que falam com naturalidade sobre ir ao Outback sábado à noite, enquanto eu estou contando moedinhas para comprar um combo no McDonalds. Outros ainda nem ao McDonalds podem ir, pois o dinheiro está contado – ou porque na cidade onde moram não tem mesmo. Tenho amigos que falam com naturalidade sobre todos os países que visitaram, seus intercâmbios e viagens internacionais, e eu escuto esperando o dia em que, talvez em um programa de voluntariado, eu possa conhecer outro país e outra cultura.
Quando eu era assalariado, ainda me dava a alguns luxos, como pagar 7 reais num cookie do Mr. Cheney ou gastar um absurdo para comer um chocolate Guylian, mas tenho amigos que nunca sequer comeram um cookie no Subway e pra quem Cacau Show é luxo.
Para alguns amigos, rico é quem tem 945 dólares para pagar num sapato masculino desenhado pelo Christian Louboutin, para outros, rico é quem tem dinheiro para comprar um blazer na Zara. E, caso você esteja surpreso, para alguns até mesmo lojas de departamento como Renner e Riachuelo são caras, eles precisam dos lojões populares com gôndolas que vendem roupas por 10,00 (e olha, eu tô muito mais para esses últimos).
E percebo que é MUITO fácil olhar para o outro e falar sobre como a pessoa deveria abrir mais a mente e fazer uma viagem internacional para compreender melhor o mundo.
É muito fácil se fazer de vítima da sua situação e não enxergar que há pessoas em situações piores que a sua.
É mais fácil ainda dizer que “É só trabalhar e estudar que tudo pode ser conquistado”, quando se sabe que, apesar do trabalho e do estudo serem essenciais para o crescimento na vida, as oportunidades vêm SIM de outras pessoas e de uma sociedade que pode ou não ir com a sua cara. Eu dependi de uma família que me apoiou, professoras que acreditaram em mim, parentes que me incentivaram e sim, dependi e DEPENDO de bolsas, de assistencialismo, que não tiram meu mérito, mas igualam as oportunidades. E isso não me torna preguiçoso, muito pelo contrário, me incentiva e me dá forças pra lutar, pois sei que pra chegar "lá" vou ter que me esforçar MUITO mais do que quem nasceu em berço de ouro, e sei também que mesmo que eu chegue "lá", ainda há espaços que confundem o chefe negro com os empregados (que, por sua vez, não recebem o valor que merecem), onde um cabelo crespo exatamente do mesmo tamanho de um cabelo liso que chegue no topo da orelha é visto como "mal cuidado e sujo".

Além de essencial para que quem é cristão trate melhor as pessoas e entenda que privilégios não privam ninguém do sofrimento, assim como a falta dos privilégios também não priva completamente ninguém das possibilidades, essa percepção dos privilégios também é essencial para o autoconhecimento e a vida em sociedade.
É a falta dessa percepção que faz com que pessoas tenham raiva de quem tem privilégios, achando que essas pessoas possuem vidas perfeitas e não têm necessidade de receber compaixão, amor e carinho.
A falta dessa percepção também fabrica pessoas que não reconhecem seus privilégios, olham para quem luta e acha que estão sendo “vitimistas”, “coitadistas”.
Não calçam o sapato do outro.

Eu SEI que tenho menos privilégios do que quem é rico ou mesmo quem é de classe média alta. Tenho menos privilégios do que quem tem cabelos lisos e olhos claros (mesmo que insistam em dizer que na verdade eu tenho mais privilégios por que não tenho câncer de pele). Mas também tenho mais privilégios do que as mulheres que estão ao meu redor. Tenho mais privilégios do que meus amigos homossexuais. Tenho mais privilégios do que meus amigos brancos pobres que não tiveram as mesmas oportunidades do que eu. Há quem não teve ninguém pra apoiar, gente que viu, ouviu, leu e assistiu na família, na mídia, nos espaços sociais a vida inteira que ele não merecia um espaço na sociedade, por ser negro, por ser mulher... E ainda viram e dizem que basta superar tudo isso, como se fosse fácil. É fácil falar quando não se está enterrado debaixo de diversas camadas de preconceito, baixa autoestima, problemas de aceitação e uma sociedade que, em termos gerais, só te puxa pra baixo. As pessoas precisam de incentivo, de um gatilho, de gente que já chegou lá em cima pra dizer, com amor e cuidado, que quem está embaixo também pode chegar. 


Para alguns, parece que dói reconhecer privilégios. Dói abrir mão do vitimismo do qual acusam os outros para dizer que chegaram onde chegaram com luta e sofrimento. Dói abrir mão da própria história triste. Dói admitir que alguém que está numa camada social “mais abaixo” da sua, pode chegar mais longe que você.
Dói mais ainda aceitar que, para o cristão, o problema do outro é sim seu problema, aceitar que o outro não é pior do que você em nada.

Mas o que dói de verdade, é perceber que ninguém está disposto a se abrir ao outro para entender sua luta. Preferem levantar bandeiras e discursos políticos do que olhar para as pessoas por trás delas. Geralmente, quem fala de luta, quem fala de minorias, quem fala de privilégios, já lutou muito pra chegar onde chegou e trata a si mesmo como vitorioso e não como "coitado", ao contrário de todas as críticas que recebem. E essas pessoas falam de empoderamento e representatividade, não pra ter privilégios sobre quem já tem, mas sim pra ajudar outros que ainda não enxergaram oportunidades que eles podem. 

E isso não está resumido necessariamente à uma agenda baseada unicamente em luta de classes.
O mundo não se resume nas páginas do manifesto comunista, nem se limita ao óbvio das liberdades individuais e competitividade mercadológica saudável.
O mundo é feito de gente.
E, caso você seja cristão, gente é o que você foi feito pra amar, cuidar e defender, entendendo que para Deus todos somos iguais, mas para a sociedade não. E é nosso dever ajudar a amenizar essas desigualdades com a sensibilidade que se exige ao lidar com pessoas.

A religião que Deus, o nosso Pai, aceita como sincera e imaculada é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades e, especialmente, não se deixar corromper pelas filosofias mundanas. Caros irmãos, como crentes em nosso glorioso Senhor Jesus Cristo, não façais acepção de pessoas, tratando-as com preconceito ou parcialidade. Se, por assim dizer, entrar na vossa sinagoga, algum homem com anéis de ouro nos dedos, trajando roupas caras, e, ao mesmo tempo, entrar uma pessoa pobre, vestindo roupas velhas e sujas, e tratardes com atenção especial ao homem bem trajado e o honrardes dizendo: “Eis aqui um lugar digno da tua pessoa. Assenta, pois”, mas disserdes ao pobre: “Tu, podes ficar ali em pé!” ou “Assenta-te no chão, próximo ao estrado onde ponho os meus pés”, não fizestes discriminação preconceituosa e vos tornastes como juízes que usam critérios perversos? Ouvi, meus amados irmãos. Não escolheu Deus os que para o mundo são pobres, para serem ricos em fé e herdeiros do Reino que Ele prometeu aos que o amam? Contudo, vós tendes menosprezado o pobre. E não são os ricos que vos oprimem? Não são eles que vos arrastam para os tribunais? Não são os ricos que blasfemam o bom nome que sobre vós foi invocado? Se vós, entretanto, observais a Lei do Reino, como está registrada na Escritura e que ordena: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”, então estareis agindo corretamente; se, todavia, tratais as pessoas com parcialidade, estareis incorrendo em pecado e sereis condenados pela Lei como transgressores.


Tiago 1:27-2:9

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