A Representação do Negro na Revista Nosso Amiguinho - Parte 3 - Cazuza e Seus Amigos



[Leia aqui a Parte 1 - O que é representação?]

[Leia aqui a Parte 2 - O negro nas histórias em quadrinhos e artes gráficas]

Continuando com as postagens referentes ao artigo a respeito da representação do negro na revista Nosso Amiguinho, que escrevi para o Adventcom (I Congresso Adventista Norte-Americano de Pesquisadores em Comunicação), esta é a última parte, onde finalmente chegamos ao objeto de estudo. Como nos textos anteriores, dei uma alterada no texto original (especialmente a conclusão) para acrescentar algumas opiniões que não poderiam ser acrescentadas no artigo e tornar a linguagem um pouco menos "acadêmica".

A Revista Nosso Amiguinho circula mensalmente pelo país desde que sua primeira edição oficial foi lançada pela Casa Publicadora Brasileira em julho de 1953, após duas brochuras de oito páginas-teste em dezembro de 1952. Desde então, a revista se tornou a maior publicação pedagógica infantil produzida por uma instituição pertencente à Igreja Adventista do Sétimo Dia e uma das maiores do país. 
Sendo voltada para o público infanto-juvenil, a Revista Nosso Amiguinho (que será referida a partir daqui como NA), segundo a descrição no site da Casa Publicadora Brasileira, “apresenta bons valores, por meio de histórias, experiências, receitas saudáveis, brincadeiras, curiosidades e atividades que ajudarão as crianças a se desenvolver social e intelectualmente”.

Como desde os seus primórdios a NA utiliza-se amplamente de ilustrações para textos corridos e histórias em quadrinhos, essa análise se restringe à representação gráfica dos personagens negros e como essa representação está contextualizada na revista. Tendo em vista os aspectos sobre representação e estereótipos discutidos no texto anterior, a análise das aparições de negros na NA se deu tanto para perceber a quantidade das representações, quanto da forma como essas representações ocorrem no período entre julho de 1954 e novembro de 1978, buscando também um comparativo que venha a contemplar mudanças em tempos recentes, compreendendo o período entre janeiro de 2014 e julho de 2017. A análise contabiliza tanto negros de pele preta quanto negros de pele parda, com outras características físicas como cabelos crespos ou traços arredondados ou não. 

A ideia aqui é destacar a importância dessa discussão e perceber como a mídia institucional cristã pode reproduzir ou confrontar as representações sociais que carregam pressupostos racistas.

A NA é conhecida por sua turma de personagens fixos que incluem o Noguinho, a Luísa, o Sabino, o Quico, o Cazuza (o único negro do grupo) e, mais recentemente, a Gi (anteriormente apresentada como Gina). Embora o Noguinho tenha aparecido primeiro em duas edições de 1970 (outubro e dezembro), acompanhado nas duas vezes de alguns amigos (um deles negro), a turma foi apresentada oficialmente em sua primeira formação em 1972, incluindo o Cazuza. Tendo isso em vista, a análise é dividida em três partes: o período antes do Cazuza (1954-1972), o período antigo pós-Cazuza (1972-1978) e o período Cazuza nos anos 2010 (2014-2017).



Antes do Cazuza (1954-1972)



A primeira aparição documentada de personagens negros ocorre logo na edição de julho de 1954 numa história em quadrinhos em cinco partes, divididas em cinco edições (julho a novembro), que contavam a história verídica de um médico missionário branco que, em missão na África (a história não diz que país é, nem o nome do missionário), enfrenta com a aldeia em que está morando, a ameaça de um búfalo selvagem. Os desenhos são de cunho realista, embora exagerem um pouco nos traços.


Após essa edição e até o surgimento do Cazuza, apresentado com a turma do Nosso Amiguinho, num período de cerca de 16 anos de edições mensais da revista, foram contabilizadas apenas 19 aparições de personagens não brancos, sendo três destes de etnia não definida como negra (todas elas em uma seção chamada “Tipos Brasileiros” que ilustrava um gaúcho vaqueiro, um jangadeiro com feições indígenas e um caiçara). A maioria dessas aparições foram em histórias em quadrinhos onde o personagem não poderia ser outra coisa, senão negro, como em quadrinhos ou narrativas sobre histórias reais (como em O búfalo selvagem e O pequeno “bem”, 1965); em ilustrações pouco significativas de atividades; 3 vezes em capas - outubro de 1958, ilustrado como um menino que leva uma bolsa com a NA (é difícil identificar se ele está apenas indo para a escola como as outras crianças, ou se o seu boné e roupa amarela e verde indicam que ele, na verdade, está entregando as revistas), e em outubro de 1967 e agosto de 1971 em fotos; 2 vezes como amigo coadjuvante do Noguinho; 1 vez foi uma mulher negra retratada como a empregada da casa numa família branca (nessas duas últimas ocorrências, os traços correspondiam ao estereótipo exagerado dos menestréis); 2 vezes numa mesma publicidade da editora, dentre outras.

Depois do Cazuza (1972-1978)

A edição de julho de 1972 foi a edição de aniversário de 20 anos e apresentou pela primeira vez, na capa e na contracapa a turma do Nosso Amiguinho, com o Noguinho, a Luísa, o Cazuza (escrito Casusa nessa edição específica), o Quico e o cachorro Azeitona. A ilustração do Cazuza não está retratada nos moldes estereotipados dos menestréis, mas ele é o único com os lábios desenhados e sua descrição na contracapa é, no mínimo, curiosa. Enquanto a Luísa é descrita como “senhorita, elegante e caprichosa” e Noguinho como “guapo e inteligente”, Quico surge com o estereótipo do caipira, “atrapalhado” e da “zoada” e Cazuza é descrito como: “legal, sempre pronto para ajudar, nunca diz não, basta ordenar” – uma descrição claramente subalterna em relação aos outros personagens que, de certa forma, representam, cada um, algum tipo de estereótipo que este artigo não contempla, mas que mereceria mais estudos. 


Em edições seguintes, a turma passou a aparecer em quase todas as capas, mas demorou a aparecer junta novamente na parte interna da revista. As poucas aparições do Cazuza se davam em ilustrações de atividades simples ou como amigo do Noguinho em histórias protagonizadas por este. Além do Cazuza, os negros continuaram aparecendo pouco e apenas em situações semelhantes às descritas antes do seu surgimento.


Na seção chamada “Enciclopédia” que sempre trazia informações sobre fatos e personagens históricos, a primeira vez a aparecer um personagem identificado como negro foi na mesma edição de apresentação da turma em julho de 1972, que falava sobre o escultor Aleijadinho, que acabou sendo o primeiro negro da história a ganhar uma capa temática sobre ele em Novembro de 1975. Em algumas edições especiais, como uma que trazia como tema de capa “Crianças ao redor do mundo” ou a matéria especial sobre o dia da independência em Setembro do mesmo ano, apareciam diversas crianças representando as principais etnias. Nas edições de abril e maio de 1973, o Cazuza não apareceu e o Quico apareceu com a mesma constituição física do Cazuza ilustrando duas atividades. Vale destacar que, em algumas edições, como em agosto de 1972 e maio de 1973 e algumas poucas edições posteriores, as histórias bíblicas em quadrinhos da NA ilustraram personagens negros coadjuvantes, como egípcios e os amigos de Daniel (1973), o que era raro naquele tempo. Diversas edições do mês de Maio traziam textos falando sobre a abolição da escravatura, alguns deles trazendo ilustrações de escravos negros.

A primeira capa que teve o Cazuza como protagonista, ele estava representando o Brasil (conotação que ele carrega desde que foi criado em suas roupas verdes e amarelas), em outubro de 1973. Em março de 1976, Cazuza aparece em uma situação que merece nota: ele ilustra uma matéria da seção de História do Brasil sobre Castro Alves, conhecido como “o poeta dos escravos”, tirando o chapéu em sinal de respeito. Em outubro de 1976, Cazuza ganhou sua primeira história como protagonista, intitulada “Cazuza e o Piano”. Mas foi apenas em julho de 1977 que o personagem passou a aparecer em todas as edições, quando se tornou a ilustração oficial da seção “Vamos tocar violão”. A essa altura, ele já aparecia em praticamente todas as capas, junto com o resto da turma. Em outubro do mesmo ano ele ganhou sua própria seção, chamada “O Clube do Cazuza”, que é a seção de cartas, desenhos e fotos dos leitores recebidas via correspondência. Esse era o clube do Cazuza, pois ele ilustrava a seção como carteiro, carregando uma bolsa com as cartas e entregando-as com a mão. Essa seção existe até hoje com o mesmo nome, embora o Cazuza não ilustre mais como carteiro, mas aparece fazendo as “adivinhas” que se tornaram características da seção a partir dos anos 90. Em junho de 1978, ele ganhou tirinhas próprias, com seu nome, que saíram em todas as edições até o início dos anos 1980. A essa altura, a turminha já possuía suas próprias histórias em quadrinhos também, e Cazuza aparecia como coadjuvante em algumas delas.

Numa contagem geral das edições analisadas num período de aproximadamente 24 anos276 números que iam de 16 a 40 páginas ilustradas, foram contadas cerca de 206 aparições de personagens negros, contando com inúmeros figurantes em histórias que se passavam na África ou num contexto de escravidão, personagens que poderiam ser considerados mestiços ou terem sido coloridos apenas pelas inúmeras falhas de impressão que a revista possuía em seus primórdios, e, salvo raras exceções, como desenhos realistas de personagens históricos, na maioria das vezes estavam desenhados com traços exagerados característicos da imagem estereotipada criada pelos comediantes que se pintavam de negros – sobretudo quando se tratava de ilustrações de personagens africanos estilizados.



A criação do Cazuza marcou o aumento da frequência com que personagens negros apareciam por edição, mas ele sempre foi o único personagem da turma desenhado com lábios brancos, salvo algumas poucas edições anteriores à padronização dos traços das ilustrações.

Os anos 2010 (2014-2017)

Para fazer um comparativo dos anos iniciais, a análise dos anos atuais foi feita entre 2014 (cuja edição de janeiro é comemorativa de sessenta anos da revista) e 2017 nos números disponíveis, dando ênfase aos meses de maio e novembro, que carregam em si, datas envolvendo as discussões raciais. Em 13 edições analisadas dentro do recorte, foram contadas 63 aparições de negros incluindo o Cazuza, que sempre aparece mais de uma vez em todas as edições. Vale destacar que, atualmente, as aparições de negros além do Cazuza não são apenas mais recorrentes, mas também são livres de estereótipos, havendo inclusive aparições que valorizem o negro fora das posições subalternas – como duas vezes em que aparecem um médico e uma médica negros, respectivamente nas edições de novembro de 2016 e março de 2017. A edição de outubro de 2016 traz, inclusive, no “Jornal do Clubinho”, uma nota sobre um livro chamado Daddy’s Little Princess que é sobre uma princesa negra e foi escrito por um pai para a sua filha que achava que não poderiam existir princesas negras. Algo interessante a ser observado é o fato de que, nos quadrinhos com histórias bíblicas, em contraste com as edições dos anos 1950-70, pouquíssimos personagens são ilustrados como brancos, e a maioria é parda com feições orientais, ou negra.

Essa história começa muito bem, mas termina com uma abordagem que eu chamo de
"color-blind" que eu considero problemática.
Duas matérias do mês da consciência negra (novembro) se destacam: a história em quadrinhos de Sueli Ferreira de Oliveira, intitulada “A Cor da Pele” (2014), que mostra a turminha colorindo e questionando as questões de cor de pele (que, apesar de no geral apresentar um bom ponto de vista, pode ser problematizado na questão de "indiferença à cor", que não ajuda no debate) e também a seção de atividades “Pinte o Sete” (2015), que foi temática do dia da consciência negra, que além do Cazuza, trouxe várias atividades relacionadas à cultura afro-brasileira e personalidades históricas negras.



Embora o Cazuza continue sendo o único personagem da turma a manter traços característicos, como os lábios grossos e o nariz achatado, manter as roupas com cores da bandeira do Brasil e ainda ser relacionado ao estereótipo do negro entertainer (aparecendo sempre relacionado à música, esportes e situações engraçadas), a imagem do personagem está bem menos exagerada. No caso dos outros negros que aparecem na revista, sua representação está mais diversificada e menos estereotipada – além de muito mais frequente.



Conclusão

As minúcias e escopo total da análise feita não puderam ser amplamente explorados neste artigo, embora ainda o possam em futuros trabalhos. Comparando os dados de pesquisa a respeito de representatividade do negro em histórias em quadrinhos do Dr. Nobuyoshi Chinen e a bibliografia pesquisada, ao mesmo tempo em que a NA aparentemente procurou se abster de caricaturizações intencionais e demonstrou mesmo algum avanço em seu tempo (como ao retratar egípcios como negros em algumas de suas histórias em quadrinhos), a publicação também refletiu muito da cultura racista na qual esteve inserida ao representar os negros em suas ilustrações. A escassez dos primeiros anos (ver levantamento na imagem abaixo) e a forma estereotipada com que estes são representados, mesmo ao final dos anos 1970, é sintomática. Embora eu não acredite que esses traços racistas nas páginas da NA sejam intencionais – observa-se inclusive uma tentativa de conscientização contra o racismo em suas seções históricas – é inevitável a percepção de que a revista reproduziu esses traços presentes na cultura popular da época, tanto na representação gráfica, como na representatividade dos locais onde o negro era colocado (em posições subalternas ou cômicas).

Levantamento quantitativo
A forma com que o personagem Cazuza foi apresentado e desenhado por todos esses anos – inclusive nos anos recentes – também merece atenção e discussão cuidadosa em suas relações com a representação estereotipada do negro, tornando-o, como diria Ana Célia Silva, um estranho. Nas edições mais recentes, fica claro que a NA tem acompanhado as discussões sociais envolvendo racismo, mas ainda há o que se rever na constituição dos personagens fixos e na formação estereotipada da turminha em si (tema que pode ser estendido a toda a formação da turma em outros trabalhos). 

Tendo em vista a importância das representações sociais para as crianças e para a sociedade corroborada pela pesquisa, a reflexão proposta aqui inclui a revisão da maneira como as discussões sociais podem afetar os meios de comunicação da igreja e ampliar a janela de diálogo das instituições cristãs com a sociedade à qual acreditam que devem anunciar a salvação. Como este trabalho foi feito voltado para a realidade adventista do sétimo dia, é importante destacar que a discussão proposta está de acordo com a declaração oficial da Igreja Adventista do Sétimo Dia que “deplora todas as formas de racismo” (Declaração sobre racismo, 27 jun., 1985).

Baseando-se nessas demandas sociais e institucionais é que o autor propõe atenção às discussões que contemplam a maneira como a cultura cristã no Brasil tem se relacionado com essas representações sociais, assim poderá dialogar de forma mais efetiva com a sociedade na qual está inserida.

Referências

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