10 Frases Racistas que Eu Ouvi na Igreja

Para ler ouvindo: Playlist "Gospel Black Power"


via hediedformygrins.blogspot.com

Hoje é Dia da Consciência Negra e durante essa semana postarei vários textos sobre o assunto aqui no blog. No decorrer da semana, estarei postando meu artigo a respeito da representação do negro na revista Nosso Amiguinho, que escrevi para o Adventcom (I Congresso Adventista Norte-Americano de Pesquisadores em Comunicação). Vou postá-lo em três partes, uma por dia, com o texto alterado pra ficar melhor para ler. A primeira parte será sobre a representação em geral, o que ela é e qual a importância dela para o negro. A segunda parte, vou afunilar o tema para a representação do negro nas histórias em quadrinhos e humor gráfico e o terceiro texto tratará exclusivamente sobre a representação do negro na Revista Nosso Amiguinho e como isso impacta com o ambiente cristão.

Este primeiro texto será uma lista de dez coisas absurdas de cunho racista que já ouvi no ambiente cristão, algumas dentro da igreja, outras na internet, outras ditas diretamente pra mim (algumas coisas inclusive eu já numerei no texto anterior sobre o assunto). A gente acha que o lugar do cristão está isento da reprodução de ideias racistas e preconceituosas, mas vai ficar claro aqui que isso não é necessariamente verdade. A ideia de que estamos num ambiente seguro, onde todos teoricamente vivem o amor ensinado por Cristo, é exatamente o que faz com que discursos racistas sejam propagados sem filtro. Se você estiver no celular e em pé, sente-se por que provavelmente você ficará escandalizado.


1 - "No céu, o seu cabelo vai ser bom"

Não foi apenas uma vez e não foi dito apenas para mim. Já vi tranquilizarem minha irmã com um: "Não se preocupe, a gente vai ser transformado no céu, então provavelmente todos teremos o cabelo liso". E, muito sinceramente, essa era uma esperança que eu tinha. Ser mais bonito no céu. Claro que todos seremos mais bonitos no céu, mas a minha ideia de "mais bonito" incluía não apenas ter o cabelo liso, mas ganhar olhos claros e, com sorte, uma pele branca, como as imagens que eu via nos livros infantis e ilustrações dos salvos na Nova Terra. Todos lindos, brancos e salvos.

2 - O importante é ter o coração branco

Essa vem de uma historinha que passavam para as crianças no projetor de slides. As imagens estáticas passavam nos slides e havia o áudio gravado da história, que vinha numa fita cassete. A ideia era ser uma história de auto-aceitação e contra o racismo. Era sobre um garotinho negro que sofria bullying racial na escola. Se eu não me engano, seus colegas o chamavam de "floquinho de neve". e chorava muito por isso. Um dia ele passou na rua e viu alguém vendendo um sabonete que deixava a pele branca como a neve. Ele juntou dinheiro e comprou o sabonete. Foi pra casa ansioso e começou a tomar banho. Nunca vou esquecer que ele se esfregou até sangrar a pele. E nunca vou esquecer o que a mãe dele lhe dizia no final da história, quando encontra o filho, obviamente ainda negro, e machucado:
"Não tem problema nenhum você ser negro, meu filho. Você é negro, mas tem um coração branco."
Aprendi naquele dia que a cor da pele não importa, desde que o coração seja branco. 


3 - Os negros são os descendentes amaldiçoados de Cam, filho de Noé

Essa é famosa. Em Gênesis 9:20-29 é relatado um episódio pós-diluviano onde Noé acaba ficando bêbado e nu. Cam ri da nudez do seu pai, enquanto seus irmãos a cobrem. Por isso Cam é amaldiçoado e da sua descendência provém os cananitas, povo que se recusou a adorar a Deus. Noé diz que Cam será servo de Sem e Jafé, assim como seus descendentes - e isso se cumpre quando Israel conquista Canaã. A questão é que, não sei como surgiu essa ideia, mas muita gente diz que a maldição que Noé lança sobre Cam é torná-lo negro, assim como a sua descendência. Isso explicaria por que os negros foram feitos escravos e continuam sendo vistos em posições subalternas.
Isso, obviamente, não possui base bíblica absolutamente nenhuma, e não deve ser levar a sério. Mas muita gente ainda crê nisso e falam como se fosse uma verdade bíblica.

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4 - A marca colocada por Deus em Caim foi a pele negra

Outra coisa parecida que também já ouvi muito. Em Gênesis 4 Deus amaldiçoa Caim e o manda para perambular pela terra, sem residência fixa. Caim teme que seja morto, mas Deus coloca uma marca nele para que ninguém o mate. O texto bíblico não dá dica nenhuma de que marca seria essa, mas muita gente diz que essa marca é a pele negra. Além disso não fazer sentido no texto, já que Noé e sua família, os únicos sobreviventes do dilúvio, eram descendentes de Sete e não de Caim, isso é bizarro e a única origem possível é a ideia racista de que nascer negro é uma maldição. 


5 - "Cabelo assim não é de Deus não, irmão!"

Essa foi dita diretamente pra mim quando eu estava deixando meu cabelo crescer. Ou seja, ele não estava sequer tão grande. Provavelmente bem mais curto do que homens com cabelo liso costumam usar. Um irmãozinho bem intencionado olhou pra cima e disse "Tá grande, né, irmão? Cabelo assim não é de Deus não viu?". Eu poderia argumentar com ele que não havia nada de errado com meu cabelo. Mas me limitei a responder: "Sabe o que não é de Deus, irmão? A tesoura. A tesoura foi o homem que criou. Meu cabelo foi Deus".

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6 - "Que blasfêmia! Jesus negro?"

A população brasileira não é conhecida por gostar de leitura, portanto não é surpresa quando alguém diz que não conhece a obra literária do Ariano Suassuna. Mas é difícil achar alguém que não tenha visto sequer a chamada da Globo quando ia passar "O Auto da Compadecida", um dos melhores filmes nacionais já produzidos. Veja, faço parte de uma igreja protestante que não concorda com a visão tradicional católica de céu e inferno, nem com a intercessão de Maria, a Compadecida. E apesar dessas discordâncias teológicas, a única coisa que eu ouvia na época em que o filme estourou era: "Nossa, mas Jesus negro?". Lembro-me uma vez de ouvir que era blasfêmia Jesus ser negro.
Mais uma pra coleção: ser negro é ser maldição e blasfêmia.

Coral de Angolanos <3 

7 - A cultura africana é do demônio

No geral mesmo. É como se a África não fosse composta de 54 países diferentes, e quase todos eles, divididos dentro de si por diferentes culturas, tribos, etnias e dialetos. Ninguém lembra que a Etiópia é um dos países que não são do Antigo Oriente Médio onde primeiro chegou o cristianismo, antes ainda do Islamismo chegar à África. É claro que os princípios bíblicos nos quais o cristianismo está fundamentado são completamente contrários a diversos costumes e crenças de diversas religiões de matriz africana, animistas e espiritualistas, principalmente. Ainda assim, 1) isso não é motivo para praticar discriminação religiosa e ser intolerante. É completamente anti-bíblico; 2) A cultura africana não se resume a essas religiões. Essa conclusão é preconceituosa. Acontece que tudo o que é relacionado à cultura africana é demonizado pela nossa cultura eurocêntrica. Nosso evangeliquês do terno e gravata olha torto para as roupas coloridas e turbantes no púlpito, nosso "crentismo" da música de Deus é só música erudita olha torto pra música afro, com seus tambores, que nas mentes preconceituosas "é macumba, é coisa do demônio". Não conseguimos lidar com diversidade. Se o próprio mundo não cristão tem sua própria parcela de intolerância à cultura não ocidental - somos educados a pensar que a cultura branca européia é superior e culturalmente mais elevada, imagine o mundo cristão... E isso se estende para música que é o próximo item. 

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8 - Música negra não é de Deus

Consequentemente, se a cultura africana em geral é demonizada, a música africana e os derivados ocidentais desta também são. A discussão sobre música na igreja cristã é longa, inconclusiva e com pouca base bíblica real. As pessoas acharão 1001 textos bíblicos, textos inspirados distorcidos pela sua interpretação carregada da cultura racista, para justificar o que os livros sensacionalistas que acusam os tambores africanos de deixar as pessoas possuídas dizem. A música de Deus, a música de Igreja é a música erudita europeia. A música negra é "baixa cultura", é demoníaca, afinal, a música negra africana deu origem aos estilos famigerados mais discriminados: soul, blues, jazz, rock, rap. Todos "do demônio". É música que desconcentra, por que o negro "grita" pra cantar, é música de gente aparecida, por que o cantor de soul music faz melisma, é música do demônio por que é batida e a batida vem dos tambores africanos das religiões animistas que vão fazer nossos jovens ficarem "emburrecidos" pelas batidas e possuídos com sua mente em transe. Assim, a música negra é admirada pela sua complexidade e talento, mas relegada à música "alegre", feliz demais, que provavelmente não é a música celeste, por que os corais de anjos brancos com harpas provavelmente estarão tocando algo parecido com Beethoven, e não com Kirk Franklin. 

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9 - "Mas ela não é apresentável o suficiente pra cantar em nosso coral..."

Aliás, falando em música, uma das piores coisas que eu já tive a infelicidade de ouvir, foi o caso de uma regente de coral que não queria passar uma mulher, mais velha, sem muitos recursos, negra, que ela não poderia cantar no coral. Ela até cantava bem "mas não é apresentavel o suficiente, se veste mal, parece favelada, tem o cabelo ruim". A regente em questão foi afastada do cargo, mas demorou um tempo para recuperar a confiança da mulher, que era membro recente da igreja. Eu prefiro não comentar este caso. Contar já é o suficiente.


10 - "Hoje em dia os negros estão sendo privilegiados"

Apresentei um trabalho sobre a cultura pop e religião onde eu analisava uma história em quadrinhos que trata de temas como intolerância e o vilão é um pastor televangelista, numa época em que televangelistas viajavam no país inteiro propagando uma agenda política intolerante, buscando "proteger" o evangelho. Ainda assim, a história não é maniqueísta e mostra claramente que o cristianismo em si não é intolerante, assim como nem todos os cristãos o são. Ao final da minha apresentação, uma pessoa que tem uma posição de liderança na igreja ficou incomodada com o fato de eu ter apontado que a história não é unilateral, e disse que esse povo quer "derrubar o nome de Cristo" e que estão conseguindo mais privilégios. Então me solta a pérola: "Hoje em dia é mais fácil ser um negro nos Estados Unidos do que um branco". Eu quase me afundei na parede e só consegui lembrar do filme "Cara Gente Branca". Eu não vou explicar por que essa frase é grotesca, você pode ler sobre isso aqui e aqui, mas eu quis deixá-la por último para mostrar o quanto a má compreensão do evangelho e a má compreensão da nossa realidade, juntos, podem fazer um estrago.

Aquele discurso de que não existem raças, mas uma raça humana, é a verdade sim. E é o que a gente acredita. Mas na prática, não é assim que a sociedade funciona. A falta de amor também se manifesta nessas coisas que não parecem importantes. O Evangelho vem à frente, o Evangelho é a nossa mensagem principal, mas como ele vai alcançar o coração das pessoas se nós ainda as discriminamos, mesmo sem querer? Se nós nos mostramos intolerantes sem perceber, por que não falamos sobre como a sociedade funciona? E mais importante, não OUVIMOS o outro, não temos sensibilidade, não demonstramos empatia. Nossa primeira reação é apontar o dedo e gritar: "Vitimista! Mimimi! Se vira com sua auto estima!".
Desculpa, mas se esse é o seu Evangelho, ele não é o que está na Bíblia.

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